Palestina e favelas cariocas: os guetos negligenciados

Por Luiz Fernando Leal Padulla*

Diariamente nos deparamos com mortes nas comunidades cariocas (rotuladas pejorativamente como favelas, mas ignorando sua origem durante a Guerra de Canudos, quando soldados improvisaram moradias em alguns lugares, inicialmente no chamada Morro da Favela, que recebia esse nome pela presença de plantas conhecidas como “favela” – Cnidoscolus quercifolius)1 assim como na Palestina ocupada. Confrontos desiguais e que parecem não ter solução.

Muitos podem estar se perguntando qual a relação que essas situações têm. Explico.

As chacinas que ocorrem nas comunidades, eufemisticamente chamadas de “operações policiais contra traficantes”, se utilizam de um discurso vazio, racista e usa armamentos pesados, drones e blindados como os tais “Caveirões” com tecnologia desenvolvida pelas forças militares e sionistas de Israel.2

Tal como fazem na Palestina, testam contra o povo inocente, rotulando-os de forma genérica como bandidos, agressores. Utilizando-se de técnica e treinamento das forças militares israelenses, a polícia atua para o genocídio do povo pobre e preto das comunidades periféricas.

Em ambas as situações o Estado é racista, e segue promovendo a limpeza étnica. Racismo esse, é bom que se diga, que atende aos interesses do capitalismo, assim como o sexismo, misoginia, machismo, sustentáculos deste sistema.

Para mídia, o agente dos crimes sempre é o povo marginalizado (ou, como propagam: bandidos, terroristas, traficantes, suspeitos), cabendo às forças militares reagirem como defesa. Com isso, promovem extermínio através de chacinas.

Não à toa, com governos de extrema-direita no Brasil (sob a égide do inelegível e seus comparsas como Cláudio Castro, Wilson Witzel e cia), as mortes por tais operações batem recordes e são normalizadas como “eliminação de bandidos”. Lembro aqui que durante o primeiro ano do governados fascista Wilson Witzel – aquele mesmo que comemorou com pulos a morte de pessoas, defendeu “tiro na cabeça” e que “abate” de criminoso não é crime3,4 – houve um recorde nas mortes por ações policiais.5

Na Palestina ocupada, não é diferente. Recentemente, o ministro israelense de Segurança Nacional, Itamar Ben-Gvir, defendeu explicitamente o extermínio dos palestinos e árabes, incitando os colonos judeus a atirar, e vangloriando-se de que “neste governo, matamos 120 palestinos nos últimos seis meses e haverá mais no futuro”. 6,7

Impossível não fazer relação ao ex-presidente (sic) e toda sua laia, que defendia exatamente o acesso às armas para “metralhar a petralhada” e “o pessoal do MST”.8,9 Tais discursos promoveram não apenas a maior radicalização da sociedade, mas aumentou significativamente os casos de violência e mortes.10, 11

No que se refere às ações policiais no Rio de Janeiro, apenas entre 2007 e 2021 foram registradas 593 chacinas, o que resultou em 2.374 mortes, sendo 1.599 apenas na capital fluminense.12, 13, 14, 15. Em 2022 as polícias mataram 1.327 pessoas no estado, representando um terço das mortes violentas no Rio.16

Fiz um levantamento para tentar dimensionar o número de palestinos que já morreram de 1948 – após o início do processo de expulsão e genocídio do povo palestino – até hoje sob a política racista e de apartheid de Israel, com base em dados oficiais da ONU17, Human Rights Watch18, Israel-Palestine Timeline 19 e o Centro de Estatística do Estado da Palestina.20

Ainda que não tenha encontrado dados referentes aos anos de 1950 – 1965, fiz o cálculo com base em dois valores: um que se refere aos assassinatos entre 1948 e 1949 (10.000 mortos, com média de 5.000/ano) e outro com os dados de 1965 até 2022 (25.425 mortos, com média de 425/ano). Sendo assim, projetando-se a média mínima e a máxima, encontrei números estarrecedores: desde o início da expulsão dos palestinos, tivemos entre 41.800 e 64.510 mortos até 2022. Até junho deste ano, Israel já matou 163 palestinos.21, 22

E, tal como no Rio de Janeiro, o genocídio continua.

Ilustrando o quão desigual é o conflito, segundo Statista – portal de estatísticas alemão, reúne os dados recolhidos pelo Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA) – o número de palestinos mortos é 22 vezes maior que o número de israelenses.23

Lembro aqui algumas das crianças vitimadas/assassinadas pelas operações policiais nas comunidades cariocas: Ágatha Félix, Kauê Ribeiro dos Santos, Marcos Vinícius da Silva, Kauã Rozário, Kauan Peixoto e Jenifer Silene Gomes, João Pedro Matos Pinto, Djalma de Azevedo Clemente.24 E outras que nem chegaram a nascer, como as 10 gestantes mortas nos últimos seis anos, assassinadas pelas tais “balas perdidas” (que sempre encontram pretos e pobres).25 É justamente no Rio de Janeiro que quase 40% das mortes de crianças e adolescentes de todo o país acontecem.14

Na Palestina, crianças também sofrem pela ação truculenta e desumana das forças militares de Israel. Somente entre 2008 e junho de 2023, 1.418 crianças foram assassinadas pelos sioinistas.23, 27

No relatório divulgado pela Defense for Children International27 os dados são revoltantes: quatro em cada cinco crianças palestinas detidas pelas forças de ocupação israelenses são submetidas a violência física durante a prisão ou interrogatório. Como forma de tortura, 49% das crianças foram mantidas em confinamento solitário, em média, por 16 dias. 81,5% das crianças relataram ter sido abusadas fisicamente por soldados ou policiais israelenses, o que incluía tapas, socos, chutes e espancamentos com armas. Israel faz isso contra crianças!

Desrespeitando as orientações da ONU – o que não é nenhuma novidade por parte de Israel  que não cumprem os Acordos de Oslo e as próprias Cartas e Resoluções da ONU (Artigos 1, 2, 3 e 4 da Carta das Nações Unidas; Resolução 260 -Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio; Resolução 1514 – Declaração sobre a Concessão da Independência aos Países e Povos Coloniais; Resolução 1761 – Sanções recomendadas contra a África do Sul em resposta à política governamental de apartheid; Resolução 2106 – Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial; Resolução 3068 – Convenção Internacional sobre a Supressão e Punição do Crime de Apartheid) – forças militares seguem sequestrando, aprisionando e torturando crianças palestinas, com média de 600 prisões infantis/ano.28

E assim como acontece com a população do Rio de Janeiro, carregam sequelas e traumas para a vida toda. São danos psicológicos (traumas) e físicos (desnutrição, falta de acesso à saúde e água potável) que afetam seu desenvolvimento e até gerações futuras, como já provou a epigenética.

Sejam danos físicos, mutilações, sejam psicológicas, causadas pelas invasões, tiroteios e arbitrariedades, como as demolições de mais de 131.000 moradias29 e a destruição de outras tantas pelos israelenses e seus bombardeios inclusive em escolas e hospitais. Imagine você nascer e não ter liberdade de circulação em sua própria terra, sempre sujeitando-se aos checkpoints sionistas. Imagine uma criança não poder frequentar sua escola porque está em meio a um tiroteio?

Nem mesmo os doentes tem vida fácil sob o regime de apartheid de Israel, que muitas vezes impedem o tratamento e cuidado de pacientes, como foi o caso emblemático de Kamal Abu Wa’er, que morreu de câncer aprisionado pelos sionistas sem direito ao tratamento.30 Em 2017, por exemplo, 54 palestinos morreram enquanto esperavam de Israel a autorização para sair dos territórios palestinos em Gaza para receber atenção médica.31

Em sua política de terror para gerar um ambiente inóspito à sobrevivência, Israel segue restringindo o acesso aos combustíveis, eletricidade e água potável, principalmente em Gaza. As mais de 2 milhões de pessoas que ali resistem têm apenas 4 horas de eletricidade por dia, e 96% da água potável está contaminada.32 Em outras localidades, colonos judeus, com apoio dos militares israelenses, invadem terras palestinas destruindo plantações, matando e roubando animais, destruindo moradias e inviabilizando à reconstrução das mesmas, pois até o acesso de caminhões e materiais de construção são limitados pelos sionistas.

Entidades denunciam os efeitos na saúde mental das crianças, expostas constantemente a estressores traumáticos.33 Levantamentos apontam que 4 em cada 5 crianças na Faixa de Gaza  vivem com depressão, tristeza e medo, e mais da metade delas já pensou em cometer suicídio. Casos de automutilação afetam 3 em cada 5 dessas crianças. Não se estranha, infelizmente, que 91% sentem-se inseguras, 84% com medo e 73% apresentam dificuldades para dormir.

E não me venham com o discurso de que os palestinos é que não desejam a paz. Lembremos do assassinato, por parte dos sionistas, do diplomata sueco Folke Bernadotte – o mesmo que libertou mais de 30 mil judeus dos campos nazistas –, escolhido como mediador da ONU para pacificar a situação em 1948.34 Ou ainda podemos citar o assassinato do premiê israelense Yitzhak Rabin em praça pública por um sionista, que era contra o Acordo de Oslo, que daria início a um possível acordo de paz.35

E para quem tenta imputar a culpa aos palestinos, lembremos o que Malcom X disse: “não confunda a reação do oprimido com a violência do opressor”.

O capitalismo, raiz de todo esse mal descrito, segue tentando apagar essas populações através do derramamento de sangue preto e palestino. Não por coincidência, o discurso que os sionistas usaram para a ocupação da Palestina, é o mesmo que o militares da época da ditadura (e de onde foram paridas as polícias fascistas que seguem exterminando a população periférica) defenderam para o apagamento dos povos: uma terra sem homens para os homens sem terra.

Novamente, assim como ocorre na Palestina, os órgãos que deveriam ser responsáveis pelas investigações e punições dos assassinos, seguem omissos. A ONU, cada vez mais desacreditada e fragilizada, servindo apenas como marionete do imperialismo (decadente) estadunidense/sionista, nada faz. Aqui no Brasil, instituições que deveriam zelar pela segurança e justiça, exercem o mesmo papel ultrajante. Na maior chacina que ocorreu no Rio de Janeiro, a do Jacarezinho e seus 28 mortos, em 6 de maio de 2021, 10 das 13 investigações do MP foram simplesmente arquivadas.36

Assim sendo, lutar pela causa legítima da Palestina é igualmente necessário contra o racismo estrutural impregnado na sociedade como um todo. Afinal, o terrorismo de Israel e esquadrões da morte das polícias seguirão até quando cometendo crimes? A “carne preta” e palestina pouco importa para a comoção da sociedade? Nossa indignação ficará restrita às notas de repúdio? Aguardaremos atitude de estados comprometidos com a burguesia? Como diz o camarada André Constantine, naturalizaremos esses “alvos matáveis”? As faixas de Gaza estão clamando por socorro, e este só virá pela organização e mobilização popular.

Assim como Ilan Pappe redefine sionismo como colonialismo, Israel como Estado de apartheid e a Nakba como limpeza étnica, proponho também a ressignificação das operações policiais nas comunidades como genocídio da população preta e polícia como capitães do mato do sistema capitalista burguês. Afinal, em ambas as situações o que se pretende  é a eliminação e a desumanização dos povos.

Aos desinformados, o desconto da ignorância. Aos que agem com desonestidade intelectual e seguem apoiando tais crimes, a cumplicidade e a culpa do sangue derramado de pessoas inocentes, injustiçadas pela ação de estados racistas.

*Luiz Fernando Leal Padulla é professor, biólogo, doutor em Etologia, mestre em Ciências e especialista em Bioecologia e Conservação. Autor do blog e do canal no Youtube “Biólogo Socialista” e do podcast “PadullaCast”. Autor do livro “Um irritante necessário”. Instagram: @BiologoSocialista.

Referências bibliográficas

1. PEREIRA, F.M.; CASTRO, C.L.C. & CHEIBUB, D.L. 2019. Favela ou Comunidade? Como os moradores, guias de turismo e outros agentes sociais compreendem simbolicamente o “morro” Santa Marta (RJ)? Revista Brasileira de Estudos do Lazer – RBEL, 6(3): 23-36. Disponível em: https://shre.ink/9Ovo

2. Armas e treinamento israelenses em mais uma chacina no Rio de Janeiro. Disponível em: https://shre.ink/9OR6  

3. ‘Teria dado um tiro na cabeça’, declara Witzel sobre esfaqueador da Lagoa. Disponível em: https://shre.ink/9ORE  

4. Witzel diz ao STF que “abate” de criminosos não fere a Constituição. Disponível em: https://shre.ink/9ORL

5. RJ: Witzel fecha primeiro ano de governo com recorde de mortes pela polícia. Disponível em: https://shre.ink/9ORS

6. ‘Atirem nos palestinos’, diz parlamentar israelense com arma nas mãos. Disponível em: https://shre.ink/9ORf

7. Ben-Gvir Calls for Assassination of Thousands of Palestinians. Disponível em: https://shre.ink/9ORs

8. Em 2018, Bolsonaro defendeu ‘fuzilar a petralhada’. Disponível em: https://shre.ink/9Og4

9. Com agronegócio, Bolsonaro exalta armas e diz que anulou ações do MST. Disponível em: https://shre.ink/9OgO

10. Com Bolsonaro, aumentou número de mortes por arma de fogo no Brasil. Disponível em: https://shre.ink/9TGg

11. Flexibilização de armas na gestão Bolsonaro é responsável pela morte de mais de 6 mil pessoas. Disponível em: https://shre.ink/9TGl

12. Operações policiais e violência letal no Rio de Janeiro: Os impactos da ADPF 635 na defesa da vida. Disponível em: https://shre.ink/9TSU

13. FBSP – FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário brasileiro de segurança pública: 2019. [s.l.]: FBSP, 2019. Disponível em: https://shre.ink/9TSH

14. FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Mortes decorrentes de intervenções policiais. Disponível em: https://shre.ink/9TSE

15. GRUPO DE ESTUDOS DOS NOVOS ILEGALISMOS – Chacina Policial. Disponível em: https://shre.ink/9TSi

16. A ordem é matar: 1.327 pessoas foram mortas pela polícia do RJ em 2022. Disponível em: https://shre.ink/9TSn

17. Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários – ONU. Disponível em: https://shre.ink/9TSA  

18. Human Rights Watch. Disponível em: https://shre.ink/9TSk

19. Israel-Palestine Timeline. Disponível em: https://shre.ink/9TSM  

20. Central Palestina de Estatísticas. Disponível em: https://www.pcbs.gov.ps/

21. Mais de 140 palestinos mortos por forças israelenses em 2023. Disponível em: https://shre.ink/9TSB

22. Israeli Forces Kill 22 Palestinians in June 2023. Disponível em: https://shre.ink/9TXU

23. The Human Cost Of The Israeli-Palestinian Conflict. Disponível em: https://shre.ink/9TX2

24. Mês das crianças: 24 crianças e adolescentes mortos em ações policiais no Rio em 2019. Disponível em: https://shre.ink/9TXR

25. Kathlen Romeu: um alerta da letalidade de operações policiais. Disponível em: https://shre.ink/9TXZ

26. Defense for Children International. Disponível em: https://shre.ink/9TXX

27. Isolated and Alone: Palestinian children held in solitary confinement by Israeli authorities for interrogation. Defense for Children International. Disponível em: https://shre.ink/9TXG

28. Heartbreaking Disparity: Child Detainees in Canada vs. Israel. Canadians for Justice and Peace in the Middle East (CJPME). Disponível em: https://shre.ink/9TXL

29. Estatísticas sobre demolições de casas / estruturas – novembro de 1947 a agosto de 2022. Disponível em: https://shre.ink/9TXc

30. Prisioneiro palestino morre de câncer na prisão de Israel. Disponível em: https://shre.ink/9TXQ

31. Mais de 50 palestinos morreram em 2017 sem assistência médica em Israel. Disponível em: https://shre.ink/9TX1

32. 11 coisas que você deve saber sobre o cerco de Israel à Faixa de Gaza. Disponível em: https://shre.ink/9TXg

33. TRAPPED: The impact of 15 years of blockade on the mental health of Gaza’s children. Disponível em: https://shre.ink/9TXl

34. Foi Israel, não Lehi, que matou o mediador da ONU Folke Bernadotte em 1948? Disponível em: https://shre.ink/9TfU

35. Há 25 Anos, o assassinato de Yitzhak Rabin assombrava Israel. Disponível em: https://shre.ink/9Tf2

36. Jacarezinho: 1 ano após 28 mortes, 10 de 13 investigações do MP foram arquivadas. Disponível em: https://shre.ink/9TfE

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